segunda-feira, 13 de julho de 2015

Capítulo I

Se eu morrer vai parar de doer. Pensei antes de tomar a dose e começar meu trabalho diário. O sol estava alto e, desde a hora que o vi nascer, nenhuma nuvem apareceu para encobrir sua luz. Eu sei disso porque o branco ofuscante ao meu redor não foi tomado por sombras. Assim como minha mente no momento que escrevo. Coloquei uma das mãos na frente do rosto e me senti um Lázaro ao sair do túmulo, mas, diferente dele, eu não era fruto de um milagre.
Meus colegas se encaminhavam aos poucos para o refeitório. Não sei em que mesa sentar. Não sei nem se estou com apetite. Atravesso o corredor externo tocando as samambaias. A fila é pequena e ágil. Foi possível me servir rapidamente e partir dali imperceptível. Vou comer mais sossegado em uma mesa à sombra das árvores. Não me isolo o quanto gostaria para não chamar atenção. Ao sentar percebo que tem alguém a caminho. Aí vem ele sorrindo. Em minha direção. Preciso sorrir. Não sei mais como fazer isso. Que força tremenda estou fazendo para retribuir um sorriso. Não quero precisar falar. Não quero, não quero.
- Como vai, Camillo?
- Bem.
Entre a pergunta e a resposta nuvens passam aceleradas sobre minha cabeça. Ele pousa a bandeja sobre a mesa e me oferece um copo de suco de laranja. Desta vez meu sorriso é legítimo, mas rapidamente se desfaz. Ocupo a boca para não ter que falar. Mastigo. Ouço o farfalhar das folhas misturando-se ao burburinho do refeitório e ao som dos meus próprios dentes dilacerando a comida. A qualquer momento vou ouvir um comentário vindo dele. Sou capaz de imaginar o silêncio absoluto que precede sua voz.
Nada além de folhas secas no chão e folhas verdes nos galhos. A paz daqui nunca me agradou, mas estou adaptado, finalmente, a isto. Tenho uma rotina exemplar: ajudo na cozinha, na faxina. Estudo, ensino, leio os mais variados livros. Escrevo. Nenhuma das atividades é um empecilho para a terapia. Ao contrário, sou sempre encorajado. Deveria me preocupar se me tornei dependente do produto de tanta ocupação, mas todos sabem que vou piorar se me entregar ao ócio. Então continuo colaborando para essa atmosfera impecável. E faço do meu corpo uma extensão desse lugar asséptico. Minhas roupas são lavadas à mão por mim mesmo. O mesmo sabão neutro que uso nelas está no banheiro para que eu me lave duas ou três vezes ao dia (minha vontade é tomar mais de cinco banhos). Na pia tem um antibacteriano e um grande tubo de álcool em gel. Não fico ressecado porque descobri que existe hidratante sem perfume assim como meu desodorante. Não deve haver um frasco de perfume num raio de cinquenta metros. Os perfumes perturbam os sentidos.
Não me falta tempo para fazer o que mais gosto: escrever. Gosto do barulho das teclas da antiga máquina de datilografia que, se não fosse por mim, estaria enferrujada. Uso ela para a primeira edição de qualquer coisa que componho. Depois corrijo os muitos trechos que me incomodam no computador. Ao final envio pra um email e não guardo nada no arquivo. Tudo que tenho são papéis que um dia levaram uma surra das teclas. Provavelmente o arquivo do email será um dia editado e, usando sucessivas mentiras, eu vou trabalhar muito para tapar os furos da minha história.
Não posso negar que há muita solidão neste processo. Diria que estou enlouquecendo se não fosse irônico demais. Só estes papéis me aproximam do que se chama diálogo, e foram diálogos comigo mesmo que me trouxeram aqui.
Ensaiei contar muitas vezes o início de tudo, mas o desfecho parece me impedir de ver todo o resto com clareza. Quando se apagaram as horas finais também se apagaram as luzes e quando finalmente se acenderam vi minhas mãos sujas de sangue. Por isso as lavo obsessivamente até hoje. Acordo em pé. Às vezes até escrevo dormindo.

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