Se eu morrer vai
parar de doer. Pensei antes de tomar a dose e começar meu trabalho diário. O
sol estava alto e, desde a hora que o vi nascer, nenhuma nuvem apareceu para encobrir
sua luz. Eu sei disso porque o branco ofuscante ao meu redor não foi tomado por
sombras. Assim como minha mente no momento que escrevo. Coloquei uma das mãos
na frente do rosto e me senti um Lázaro ao sair do túmulo, mas, diferente dele,
eu não era fruto de um milagre.
Meus colegas se
encaminhavam aos poucos para o refeitório. Não sei em que mesa sentar. Não sei
nem se estou com apetite. Atravesso o corredor externo tocando as samambaias. A
fila é pequena e ágil. Foi possível me servir rapidamente e partir dali
imperceptível. Vou comer mais sossegado em uma mesa à sombra das árvores. Não
me isolo o quanto gostaria para não chamar atenção. Ao sentar percebo que tem
alguém a caminho. Aí vem ele sorrindo. Em minha direção. Preciso sorrir. Não
sei mais como fazer isso. Que força tremenda estou fazendo para retribuir um
sorriso. Não quero precisar falar. Não quero, não quero.
- Como vai,
Camillo?
- Bem.
Entre a pergunta e
a resposta nuvens passam aceleradas sobre minha cabeça. Ele pousa a bandeja
sobre a mesa e me oferece um copo de suco de laranja. Desta vez meu sorriso é
legítimo, mas rapidamente se desfaz. Ocupo a boca para não ter que falar.
Mastigo. Ouço o farfalhar das folhas misturando-se ao burburinho do refeitório
e ao som dos meus próprios dentes dilacerando a comida. A qualquer momento vou
ouvir um comentário vindo dele. Sou capaz de imaginar o silêncio absoluto que
precede sua voz.
Nada além de folhas
secas no chão e folhas verdes nos galhos. A paz daqui nunca me agradou, mas
estou adaptado, finalmente, a isto. Tenho uma rotina exemplar: ajudo na cozinha,
na faxina. Estudo, ensino, leio os mais variados livros. Escrevo. Nenhuma das
atividades é um empecilho para a terapia. Ao contrário, sou sempre encorajado.
Deveria me preocupar se me tornei dependente do produto de tanta ocupação, mas
todos sabem que vou piorar se me entregar ao ócio. Então continuo colaborando
para essa atmosfera impecável. E faço do meu corpo uma extensão desse lugar asséptico.
Minhas roupas são lavadas à mão por mim mesmo. O mesmo sabão neutro que uso
nelas está no banheiro para que eu me lave duas ou três vezes ao dia (minha
vontade é tomar mais de cinco banhos). Na pia tem um antibacteriano e um grande
tubo de álcool em gel. Não fico ressecado porque descobri que existe hidratante
sem perfume assim como meu desodorante. Não deve haver um frasco de perfume num
raio de cinquenta metros. Os perfumes perturbam os sentidos.
Não me falta tempo
para fazer o que mais gosto: escrever. Gosto do barulho das teclas da antiga
máquina de datilografia que, se não fosse por mim, estaria enferrujada. Uso ela
para a primeira edição de qualquer coisa que componho. Depois corrijo os muitos
trechos que me incomodam no computador. Ao final envio pra um email e não
guardo nada no arquivo. Tudo que tenho são papéis que um dia levaram uma surra
das teclas. Provavelmente o arquivo do email será um dia editado e, usando sucessivas
mentiras, eu vou trabalhar muito para tapar os furos da minha história.
Não posso negar que
há muita solidão neste processo. Diria que estou enlouquecendo se não fosse
irônico demais. Só estes papéis me aproximam do que se chama diálogo, e foram diálogos
comigo mesmo que me trouxeram aqui.
Ensaiei
contar muitas vezes o início de tudo, mas o desfecho parece me impedir de ver
todo o resto com clareza. Quando se apagaram as horas finais também se apagaram
as luzes e quando finalmente se acenderam vi minhas mãos sujas de sangue. Por
isso as lavo obsessivamente até hoje. Acordo em pé. Às vezes até escrevo
dormindo.
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